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No contexto da construção do MAIS – Centro de Memória de Artistas LGBTQIAPN+ no Interior de São Paulo, diversas ações de pesquisa e produção de memória social foram realizadas. Dentre elas, o Mapeamento de Pessoas Artistas e Coletivos LGBTQIAPN+ nessa região do estado teve um papel central: a partir dele traçamos um primeiro cenário da realidade da produção artística, dos desafios e das características das poéticas dessa comunidade artística interiorana.

Embora nossa proposta também seja documentar a memória da comunidade em territórios esquecidos, perseguidos ou rasurados, limitar esse percurso a respostas definidas é impossível, dada a diversidade ainda velada e a complexidade artístico-cultural que encontramos. No entanto, é possível iniciar um processo – o primeiro de muitos – e reconhecer temas, poéticas, territórios e desafios em comum (ou não). Sistematizar, sensível e indisciplinadamente, essas poéticas, trajetórias e produções foi – e ainda é – nosso maior desafio, e também o eixo curatorial que alimenta esta exposição.
Nesse contexto de mapeamento, criação de dados, análises e produção de memória, esse universo investigativo — poético e científico — nos orientou a coreografar esta cartografia e desenhar este primeiro mapa, como estudo bruto de um processo em permanente construção. Um pedaço de pergaminho repleto de potências, marcas, usos e tentativas de dimensão – a qual talvez nem queiramos encontrar por completo.

Mesmo que ainda não esteja — disciplinadamente — publicada nas mapotecas consideradas como principais, é por esse caminho que trilhamos a construção e a transformação de uma memória viva da comunidade. Este atlas, portanto, é um ensaio nunca definitivo; um eterno exercício de plasticidade; um processo constantemente aberto a descobertas que se escreve e se atualiza em capítulos ainda por vir.

É com muita satisfação que apresentamos o ATLAS DE POÉTICAS INTERROMPIDAS, a primeira exposição virtual do MAIS, e convidamos todas as pessoas visitantes a descobrirem novos territórios e produções de artistas LGBTQIAPN+ nos interiores (esquecidos, mas muito vivos) do estado de São Paulo.

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Artistas

AFFONSO MALAGUTTI
ALEXSANDRO STENICO
ARTYN FAJUTA
BÁRBARA
DANIEL SILVA
DORA ROMANTINI
EDUARDO SANCINETTI
ENZO FERRARA
ISABELLA BENINCA
JAMAL
JOSIANE GIACOMINI
KAI (KAITEDRAL)
LEONARDO SANCHEZ
LUANA CRISTINI
LUI GUIMARÃES
NICOLAU
PEDRO VIADD
RONNA
TAINOG
TECTONIZA
YVIS ESTEVES

Coordenação Geral

Rafael Lucas Cavalheri

Produção Executiva

Graziela Zanin Kronka

Assistente de Produção

Yugo Martins

Curadoria

Rafael Lucas Cavalheri

Assistente de Curadoria

Graziela Zanin Kronka

Pesquisa

Ana Cecília Pereira

Rafael Lucas Cavalheri

Graziela Zanin Kronka

Design Gráfico

João Maiolini

Web Design e Programação

Renan Dadalte

Social Media

Yuri Araújo

Audiodiscrição

Elizabeth Costa Jardim

Mariana Dias

Assessoria de Imprensa

Josiane Giacominni

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Epílogo

O epílogo inaugura o primeiro ato da exposição: uma provocação que convida a refletir sobre a (des)ordem das narrativas de memória LGBTQIAPN+. Essas histórias, que não existem em sua totalidade nos documentos oficiais, são marcadas por apagamentos e silenciamentos. O que encontramos são fragmentos, cacos e trechos — nem sempre escritos pela própria comunidade —, aspectos que tornam ainda mais difícil a construção linear e cronológica dessa memória.

Ao reunir artistas e obras do interior de São Paulo, a exposição, assim como a própria história da comunidade LGBTQIAPN+, apresenta trabalhos construídos entre brechas, lutas, silêncios e celebrações. É a arte nascida entre gestos de (re)existência, afeto e invenção. Aqui, lacunas e ausências — territoriais, raciais, de gênero, de classe, étnicas, históricas — não são pontos a serem resolvidos, mas expandidos.

O ATLAS DE POÉTICAS INTERROMPIDAS que se apresenta ao público é um conceito em movimento. Não pretende oferecer narrativas concluídas, mas evidenciar aquilo que permanece em trânsito: inspirações que, mesmo - e porque - fragmentadas, alimentam as pessoas artistas dessa comunidade em seu árduo trabalho de carregar céus e mundos nas costas, sustentando lutas, conquistas, identidades e existências.

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Rascunhos, Poéticas e Trajetórias Inacabadas: A Vida

Ao longo do mapeamento, nos deparamos com inúmeros processos, obras e trajetórias atravessadas por interrupções e deslocamentos nas tentativas de pessoas permanecerem artistas. Há uma constante movimentação entre territórios — seja pela formação, pela busca de trabalho ou pela simples necessidade de sobreviver — e essas migrações afetam diretamente as produções e os modos de criar.

Debruçar-se sobre a poética interrompida é legitimar essas produções que, apesar de tudo, ainda minam, resistem e existem. Buscamos olhar atentamente para esses rascunhos, intenções e movimentos não como falhas ou defeitos, mas como características. Assim, compreendemos que o inacabado não é ausência, mas presença em processo; não é limite, mas respiração.

Nesse fluxo, a identidade se revela como movimento, (re)invenção e performance — e a arte se torna estratégia e, por vezes, a única voz. Entre o que se escreve e o que se apaga, o que permanece é a vida: vestígios, traços e narrativas, onde o gesto artístico e a sobrevivência se confundem. É essa vida que orienta a leitura da exposição — não como um resgate, mas como um reencontro com o que insiste no direito de existir.

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Solos, encaixes e solidão

A busca por identidade é inerente ao ser humano. No entanto, o percurso e a performance que cada sujeito atravessa (des)configuram e singularizam cada processo. Assim, encontros e desencontros, em diferentes contextos, se aproximam e se afastam. Para a comunidade LGBTQIAPN+, entretanto, a solidão é um ponto em comum.

No contexto da produção artística — repleto de sensibilidades e seres que sentem e expressam — esse sentimento se destaca. É possível observar, nos relatos e nas obras, distintas formas de encaixe: personalidades, performances, maneiras, máscaras e contrastes que as pessoas LGBTQIAPN+ assumem para caber nos espaços familiares, escolares, sociais, profissionais, de crenças, de amizades e de intimidades. Cada tentativa de adaptação para o pertencimento carrega o peso das violências e a dor de se movimentar para ser.

Essa dança — bailada a dois, a três, a milhares — é, no fundo, um solo. Um corpo tentando acompanhar o ritmo do mundo. Em cada gesto, uma nova exigência, em um eterno processo de interpretação e formação de calos e feridas, marcado por preconceitos estruturais e históricos; por insinuações sutis; por comportamentos, olhares ou palavras que, amparados por normas e moralidades sociais, violentam e limitam os desejos e prazeres. É um processo de equilíbrio contínuo, onde a identidade dessa comunidade, por vezes, é mutilada num caminho de (des)encaixes e solidão.

Com essas feridas sociais, coabitam também as cicatrizes internas: poéticas, processos e pequenas mortes de sonhos, projetos e identidades que não conseguem conviver dentro do mesmo corpo. Para algumas pessoas artistas, a dor se torna combustível; para outras, é simplesmente dor — obstáculo, silêncio, exaustão.

Ser LGBTQIAPN+ no interior, muitas vezes, é inventar caminhos onde nunca houve trilhas. É atravessar olhares, criar refúgios, redefinir a noção de família e fazer da arte um lugar seguro; é, sobretudo, um ato de coragem, diante de um mundo que insiste em não dançar.

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Escandalizar

Nenhuma criação artística nasce em paz. Muitas vezes, é no grito, no levante, na raiva e no esforço coletivo que a arte acontece. Podem surgir, na antiestética, na fricção e na diferença, as experiências mais vivas e as soluções mais complexas para a transformação social. Reconhecer as diversidades, privilégios e preconceitos é também dar nome às discriminações — e, ao nomear, reexistir.

Durante a organização das produções e trajetórias, emergiu um conjunto de obras que, com ousadia, escandalizam questões sobre a interseccionalidade dos gêneros; o chão - simbólico, físico e político; as rotas e fluxos a ocupar; e sentimentos como desobediência e pertencimento.

Essa ousadia é poética, mas principalmente ferramenta de liberdade: gritar o que antes era sussurrado, cruzar territórios interditados, desafiar tudo o que, historicamente, tenta silenciar essa comunidade é romper com os estigmas e preconceitos estruturais que operam no apagamento das identidades e corpos LGBTQIAPN+. Ainda mais quando os gestos de autonomia e fortalecimento desse grupo ainda são vistos — dentro de uma cultura machista, fundamentalista e heteronormativa — como ameaça, desvio ou revolta.

Ser artista é, acima de tudo, ser disruptivo; produzir, se expor, mover e provocar — exercitar um ofício que por si só já é atravessamento.
Mas ser pessoa artista LGBTQIAPN+ no interior, desenvolver coletivos e fazer da produção artística um instrumento de lutas sociais e reinvenção contínua — para nos transformar enquanto sujeitos e sociedade - é mais do que isso: é revolução. Artistas nem sempre buscam aceitação — às vezes, é a revolta, a faísca.

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Entre Fronteiras e Pontes:
O Mapa do Tesouro

Ao navegarmos pela viva e constante zona de transição do estuário que desenha este ATLAS DE POÉTICA INTERROMPIDAS, nos perguntamos por que a história da arte e as curadorias dominantes no Brasil raramente acolhem integralmente as expressões LGBTQIAPN+; e por que, quando o fazem, escolhem sempre as mesmas pessoas artistas dessa comunidade. E este questionamento, que também é uma constatação, parece mais intrigante quando consideramos as comunidades artísticas dos interiores dos estados. Enquanto nas capitais o terreno artístico é injustamente demarcado e infertilizado do ponto de vista da diversidade, os territórios interioranos transbordam multiplicidade poética. A saturação desgastante da monocultura das artes nos grandes centros urbanos contrasta com a abundância ignorada de roças seminais, ricas em linguagens e trajetórias artísticas variadas e autênticas.

Pensar e executar políticas públicas e ações referentes às artes sempre foi um ato de resistência no Brasil. Elaborar e executar políticas públicas voltadas para a comunidade artística LBGTQIAPN+ nos interiores dos estados brasileiros é mais do que isso: é subversão. Em 2024, os gastos com ações culturais de todas as naturezas no país inteiro foram pouco mais de 0,5% dos orçamentos de todos os estados juntos. São Paulo, que tem o segundo maior número de municípios, destinou a essa área pouco mais de 0,3% de sua despesa total.

Diante desses dados, não nos surpreende, portanto, que os resultados da primeira fase do Mapeamento (inédito e pioneiro) de Pessoas Artistas e Coletivos LGBTQIAPN+ no Interior de São Paulo mostraram que todas as pessoas respondentes encontraram obstáculos para desenvolver sua produção artística nessa região do país. Essas barreiras, situadas especialmente em espaços culturais, nos órgãos públicos, no convívio social, no ambiente familiar e em instituições de ensino, se manifestam das mais diversas formas: censura, autocensura, medo, preconceito, falta de financiamento, falta de apoio institucional, invisibilização, limitação estrutural, falta de reconhecimento e dificuldade para acessar formação artística e editais.

Para além do acentuado déficit orçamentário que se verifica no nível nacional, a comunidade artística LGBTQIAPN+, especialmente no interior dos estados, ainda é submetida, em pleno século XXI, a constantes atos de violências cotidianas contra a orientação sexual e a identidade de gênero, afetando a sua existência, como um todo, e sua produção artística, em especial. Essas violências se verificam na ausência (ou deficiência) de políticas públicas específicas; nas diversas formas de preconceito no convívio social; na falta de acolhimento pelos espaços e instituições culturais locais, os quais, frequentemente, invisibilizam de forma autoritária e consciente as poéticas de pessoas artistas LGBTQIAPN+. Já passou da hora de as gestões culturais locais - públicas e privadas - dos interiores assumirem suas responsabilidades pelo reconhecimento e valorização dessa comunidade e oferecerem a ela reais condições de desenvolver os seus trabalhos.

Para essa comunidade, onde deveriam existir pontes – que conectam diferenças e diversidades -, há muros – que criam desigualdades e perpetuam privilégios. As fronteiras – que delineiam zonas de diálogos em constante expansão e recuo – são invadidas por limites – que impõem silenciamentos, rupturas, violência e censura. Pensar nos territórios artísticos – físicos e simbólicos – como fortalezas isoladas por muros e reduzidas a limites é o mesmo que se guiar por uma bússola que aponta para o próprio umbigo e, assim, projetar um mapa da Terra plana, branca e heteromasculina, o qual, nos leva apenas do nada ao lugar nenhum.

O feliz encontro dos desejos subversivos do MAIS com o Edital de Fortalecimento da Cultura LGBTQIAPN+ do PROAC nos permitiu seguir outros ventos e traçar um percurso possível de territórios conectados por pontes, expandidos por fronteiras e povoados de poesia e diversidade. O caminho percorrido até aqui não foi tranquilo. A maré nem sempre esteve favorável. As intempéries tentaram nos fazer desistir em vários momentos. Seguimos navegando. Desvendamos as pistas quase indecifráveis dos mapas e chegamos ao maior tesouro: as pessoas artistas LGBTQIAPN+ interioranas, os verdadeiros titãs tupiniquins, caipiras, quilombolas e caiçaras. Figuras heroicas que, munidas de coragem e audácia, abrem clareiras, carpem roças, navegam em precárias embarcações, e travam incansáveis lutas contra os monstros do descaso para ocupar merecidamente seu lugar de protagonistas e nos presentear com a celebração e a beleza - nem sempre confortável - das suas artes.

E onde - e quando - as artes governam e as memórias são respeitadas, ganha toda a sociedade, LGBTQIAPN+ ou não.

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uma fala (muda)

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de espinhos,
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e espinhos,
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e até um vão...
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e um florescer, na pele,

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livre!
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E um caminho

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e outro
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musical...

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a tentação!

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o amor,
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e a fé!

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Um círculo de recomeços, feito de
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silêncios, cor, calor e nenhum retrocesso!
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Uma viagem sempre em andamento... quer subir?
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Olhar pela janela? Ainda dá tempo de escrever!!!
um laço
uma fala (muda)
a voz no breu
a pele
da pele
do olho
dos pelos
de espinhos,
e espinhos,
e até um vão...
e um florescer,
na pele,
livre!
E um caminho
e outro
ora feliz
triste
árido
infantil
musical...
a tentação!
Em todos eles,
o amor,
e a fé!
Um círculo de recomeços, feito de
silêncios, cor, calor e nenhum retrocesso!
Uma viagem sempre em andamento... quer subir?
Olhar pela janela?
Ainda dá tempo de escrever!!!